‘Coringa’ se leva a sério demais e empobrece vilão icônico das HQs
Grande atuação de Joaquin Phoenix se salva em filme pretensioso
Se “Coringa”, que estreia nesta quinta-feira (3) no Brasil com a origem do vilão dos quadrinhos do Batman, fosse um terço do filme que acha que é, poderia colecionar estatuetas no próximo Oscar. Infelizmente, não é o caso.
Tirando a grande atuação de Joaquin Phoenix (“Ela”) como o protagonista, a produção pretensiosa se permite cometer os mesmos pecados que tenta criticar, ao mesmo tempo em que se inspira tanto em clássicos que acaba com pouco tempo para mostrar algo original.
Seu maior crime, no entanto, é se levar a sério demais e empobrecer um dos vilões mais interessantes dos quadrinhos com uma história clichê e repetitiva.
Por que tão sério?
A vida não é fácil para Arthur Fleck. Ele:
- mora com a mãe (Frances Conroy) aos mais de 40 anos;
- tenta ser comediante sem ser engraçado;
- é demitido do trabalho de palhaço após ser roubado e espancado;
- é humilhado em rede nacional por seu herói;
- e ainda deve superar uma condição psiquiátrica que o faz rir sem controle a qualquer momento.
Isso tudo ajuda a compreender um pouco quando nosso anti-herói surta e reage de forma um tanto exagerada a mais um ataque. Com três riquinhos como vítimas, a cidade em crise logo adota a imagem de um palhaço justiceiro como seu representante contra as desigualdades sociais.
A ideia era mostrar que qualquer um está a um dia ruim de se tornar um Coringa. No entanto, conforme a sucessão de tragédias caem sobre Arthur, o roteiro do diretor Todd Phillips (da trilogia “Se beber, não case”) e de Scott Silver (“O vencedor”) apenas reforça sua condição específica.
Cada desgraça de certa forma força o espectador a ter empatia com aquele coitado na tela, justificando mais ou menos suas ações. No filme, todas as mortes provocadas pelo protagonista têm uma explicação, uma justificativa, a antítese do vilão nos quadrinhos, uma força da natureza sem motivos além do caos pelo caos.
Scorsese sem Scorsese
Quando anunciado, o filme seria produzido pelo cineasta Martin Scorsese (“Os infiltrados”), que depois deixou o projeto. Isso talvez explique por que a história sobre um comediante alucinado e possivelmente psicótico se pareça tanto com uma mistura de dois de seus filmes, “Taxi Driver” (1976) e “O rei da comédia” (1982).
Com isso, “Coringa” pode até surpreender e agradar quem nunca viu as produções, ambas estreladas por Robert De Niro (que também está no filme, veja só). Não há nada errado em homenagear clássicos, ainda mais desta grandeza.
O problema é que as referências são tantas que em pouco tempo o público passa a se perguntar se rolou apenas uma inspiração ou se realmente está assistindo a um filhote dos dois, com pouquíssimo espaço para surpresas ou ideias originais.
Mais do que isso, Phillips tenta emular as críticas sobre glorificação da violência ou sobre o culto a celebridades construídas por Scorsese, mas, sem perceber (ou talvez até de propósito. Isso não fica claro) acaba abusando das mesmas coisas que queria criticar – sem chegar à mensagem final.
A dança do Phoenix
Ninguém discute que Joaquin Phoenix, indicado a três Oscars, seja um grande ator. Sua atuação como Arthur é sublime, ao transmitir a loucura e a dor com os olhos enquanto tem mais um ataque de riso incontrolável.
Consciente disso, Phillips explora todo o trabalho do ator e lhe dá espaço para fazer o que quiser. A mão pesada do cineasta, no entanto, tira toda a sutileza de suas ações e as joga na cara do espectador.
“Veja só que boa atuação!”, a câmera parece gritar a todo momento, enquanto Phoenix/Arthur dança por minutos sem corte em um banheiro público após mais uma sequência dura e violenta
Com isso, em comparação com a atuação minuciosa e detalhista de Heath Ledger em “Batman: O Cavaleiro das Trevas” (2008), indiscutivelmente o retrato mais icônico do vilão no cinema, algumas das escolhas de Phoenix parecem pesadas e forçadas.
Tudo por culpa do esforço do diretor de construir um filme “de arte” sem a habilidade necessária para fazê-lo – ou pelo menos o material necessário para tanto. Como ele mesmo assina o roteiro, não sobram muitas pessoas para culpar.
Sem participação direta no universo cinematográfico da DC, “Coringa” era a promessa de histórias fechadas e mais bem contadas nos cinemas. Algo parecido com o que editora fez tão bem com graphic novels como “O Cavaleiro das Trevas” ou “A piada mortal”.
Faltou só lembrar que o sucesso dessas obras foi atingido exatamente por autores como Frank Miller ou Alan Moore, artistas no ápice de suas carreiras. Uma realidade bem longe, pelo menos por enquanto, daquela vivida por Phillips.