CRISE NOS EUA: País tenta lidar com alta de moradores de rua e esvaziamento dos centros

Ron Dudley, 47, teve um choque no começo da pandemia. Da noite para o dia, tudo se fechou e ninguém mais aparecia para falar com ele ou comprar o jornal que ele vende nas ruas de Washington. “As pessoas não queriam chegar perto. Tinham medo de se contaminar.”

Ele vive em situação de rua em Washington há seis anos. Atualmente, dorme em um abrigo e, durante o dia, vende o jornal Street Sense, parte de um projeto para ajudar pessoas sem moradia, na região da rua 14 —uma das mais movimentadas da área central da cidade, mas que hoje tem diversas fachadas vazias.

“Isso aqui era tão movimentado quanto Nova York. Depois da pandemia, as pessoas foram embora. Muitos restaurantes fecharam, e vários apartamentos estão vazios”, comenta Dudley, na calçada da rua 14, em uma manhã de bastante sol e poucos pedestres. “Não acho que vai voltar a ser como antes.”

Assim como em Washington, muitas cidades americanas ainda tentam lidar com a queda de circulação nas áreas centrais. Parte dos escritórios segue vazia depois da adoção do trabalho remoto, e quem se mudou das metrópoles enfrenta dificuldades para voltar, já que o preço dos imóveis subiu muito nos últimos dois anos no país, especialmente nas grandes cidades.

Estas duas questões —a falta de pessoas nas ruas e o alto custo da moradia— impactam os moradores de rua americanos. Os sem-teto costumam contar com redes de apoio nas áreas onde vivem. Residentes e trabalhadores que os veem no mesmo lugar todos os dias costumam ajudar com dinheiro, comida ou pequenos trabalhos. Do outro lado, a alta do preço das casas faz com que mais gente corra risco de ir morar nas ruas e dificulta que quem esteja nessa situação saia dela.

“É muito difícil alugar um apartamento. Pedem coisas demais para comprovar renda, e os preços estão muito altos”, conta Dudley. “No abrigo, tenho uma cama, um chuveiro, mas meu maior sonho é um dia pegar a chave de um lugar que seja meu. É difícil.”

O perfil dos sem-teto americanos varia. Muitos deles perambulam pelas cidades durante o dia, levando suas coisas em malas de rodinhas ou carrinhos de supermercado. Em Washington, é comum vê-los em espaços públicos, como bibliotecas, cafés e unidades do McDonald’s.

Ao circular pelas ruas, ouve-se com frequência o pedido “Do you have some change?” (você tem algum trocado?). Há também abordagens mais complexas, como a de pessoas bem-vestidas que puxam conversas nas ruas fazendo um elogio ou pedindo uma informação, para em seguida pedir algum dinheiro para comida ou para completar o dinheiro da passagem de ônibus.

Atualmente, não há números precisos sobre o total de pessoas em situação de rua nos EUA. A cifra vinha crescendo ano a ano desde 2017, segundo dados da USICH, órgão que faz levantamentos sobre esse tema para o governo americano. Em janeiro de 2020, havia 580 mil pessoas.

Com a pandemia, muitas cidades deixaram de fazer contagens, por receio de que isso aumentasse o risco de contágio. O relatório mais recente do USICH, com dados de 2021, levou em conta só o total de pessoas em abrigos: 326 mil. O documento ressalta, no entanto, que muitos dos lugares reduziram sua capacidade durante a pandemia para ampliar o distanciamento social à custa da redução de vagas.

Sem vagas nos abrigos, houve aumento nas tendas espalhadas por ruas e praças de cidades como Los Angeles e Washington. Na capital, há várias praças tomadas por cabanas. Elas ficam por semanas no mesmo lugar, até que, de repente, são retiradas. Algumas semanas depois, parte delas volta ou surgem novos moradores temporários.

Algumas das praças ocupadas por tendas possuem banheiros químicos e bebedouros. Voluntários e entidades servem refeições grátis diariamente. A vida nas tendas, no entanto, é ainda mais difícil em um país de temperaturas extremas, com calor que supera os 38°C no verão e que tem neve no inverno.

As grandes cidades dos EUA variam as formas como lidam com as tendas. Em Los Angeles, a Prefeitura comandada pelo democrata Eric Garcetti permite que amplas áreas perto do centro fiquem ocupadas. A gestão vem adiando, há meses, a conclusão de um censo da população de rua. Em 2020, antes da pandemia, havia 66 mil pessoas sem teto na cidade.

Já em Nova York, o prefeito Eric Adams, também democrata, adotou uma postura de linha dura para reduzir a presença de moradores de rua nas áreas centrais e no metrô.

“Adams está muito focado em trazer as pessoas e empresas de volta para os distritos centrais. Nessas áreas, pesquisas mostram que os empregados das companhias não se sentem seguros. E então ele se propôs a remover os acampamentos das pessoas e tirá-las das ruas”, aponta Matthew Murphy, diretor-executivo do Furman Center, centro de pesquisas em moradia da Universidade de Nova York.

Por outro lado, Adams tem investido na ampliação das opções de abrigo, incluindo um novo modelo que busca ser um meio-termo entre o abrigo temporário e a moradia definitiva, onde as pessoas sem casa possam passar períodos maiores em locais mantidos por igrejas e entidades com ajuda da prefeitura.

Em meados de agosto, a cidade de Nova York tinha 53 mil pessoas dormindo em abrigos a cada noite, segundo dados do projeto City Limits, que compila dados de vários centros de acolhida. Em janeiro, eram 46 mil. Califórnia e Nova York são os estados com o maior número de moradores de rua no país.

Tanto o pesquisador Murphy quanto Dudley, que vive em um abrigo, consideram que a principal forma de resolver a questão é ampliar a oferta de casas disponíveis e o acesso a elas. “Em Nova York, a taxa de vacância de moradias é de menos de 1%. Na cidade, praticamente não há casas disponíveis para pessoas que só podem pagar até US$ 1.500 por mês. O que fará uma pessoa que não consegue pagar mais do que isso, mas que tem toda a sua vida ligada à cidade de Nova York?”, questiona Murphy.

Nos próximos meses, o risco de recessão pode piorar o problema, já que o esfriamento da economia cortaria empregos e a renda das famílias, que terão mais dificuldade para pagar as contas.

“É comum que as pessoas despejadas acabem em um abrigo de sem-teto”, aponta Murphy. “Muitos setores da economia ainda não se recuperaram, e há a questão de como uma recessão afetará a capacidade das pessoas de pagarem aluguel.”

“Você poderia pegar estes lugares abandonados e abrir espaço para as pessoas que não tem como pagar ficarem neles”, sugere Dudley, enquanto aponta para prédios vazios da rua 14. “Mas eu não posso reclamar do governo. Mesmo o do [ex-presidente] Donald Trump. Os cheques de estímulo chegaram quando eu precisava. Mas eu quero um dia pegar a chave de uma porta que seja minha, de um lugar que eu tenha alugado. É meu grande sonho.”

Mostrar mais
Botão Voltar ao topo