Farmácia engana imigrantes com vacina por R$ 100 que ‘trata covid’

Uma farmácia de São Paulo que estava vendendo o que apresentava como uma “vacina para o tratamento da covid-19” foi alvo de uma operação ontem.

Imagens gravadas pela BBC com uma câmera escondida mostraram que as doses eram aplicadas ao custo de R$ 100 dentro da Drogaria Diamante, na zona norte de São Paulo.

Nas cenas, vários pacientes bolivianos —incluindo uma grávida e uma idosa— são atendidos na farmácia por um homem de avental branco.

Um repórter da BBC esteve no local e, dizendo que havia tido covid-19 e relatando sintomas da doença, foi aconselhado a tomar a “vacina” (leia mais abaixo).

Alguns pacientes que receberam o falso imunizante foram hospitalizados em estado grave com sintomas de covid-19, e uma mulher acabou morrendo vítima da doença, segundo o atestado de óbito obtido pela BBC.

Não existem vacinas para tratar a covid-19. As vacinas oficiais ajudam a prevenir a doença. Funcionários da farmácia foram levados à delegacia para prestar depoimento.

A BBC tentou contato com a Drogaria Diamante para que ela se posicionasse sobre a gravação e a vistoria, mas o estabelecimento fechou as portas e não atendeu os telefonemas até a publicação desta reportagem.

Muitos clientes da farmácia vivem nos seus arredores. A loja fica no nº 2651 da avenida Alberto Byington, na Vila Maria Alta, zona norte da capital paulista.

Embora o acesso à farmácia seja livre, o principal público do estabelecimento são imigrantes da Bolívia —estima-se que entre 100 mil e 300 mil vivam em São Paulo, muitos em situação vulnerável por conta da condição migratória irregular.

Imigrantes podem tomar vacinas pelo SUS (Sistema Único de Saúde), inclusive contra a covid-19. A Drogaria Diamante, porém, não está listada entre os pontos oficiais de vacinação em São Paulo.

‘Detalhes só pessoalmente’

A BBC News Brasil telefonou ao local na semana passada após receber a informação de que pacientes com covid-19 haviam sido internados dias depois de terem sido atendidos na farmácia, onde teriam recebido a “vacina” que supostamente trataria a doença.

Uma dessas pessoas, uma mulher boliviana de 35 anos, teria visitado a farmácia por vários dias seguidos para realizar “tratamento” para covid-19, o que incluiu a aplicação da “vacina” e gastos de cerca de R$ 2.000.

Em 18 de junho, ela deu entrada no Hospital Geral Vila Penteado, na zona norte, com mais de 50% dos pulmões comprometidos, segundo o laudo de um exame obtido pela BBC News Brasil. A mulher foi intubada e morreu 12 dias depois, em 30 de junho, deixando três filhos pequenos.

O atestado de óbito aponta como causa da morte “insuficiência respiratória aguda/infecção por coronavírus – covid-19”.

Na conversa telefônica, um atendente na drogaria confirmou a aplicação de “vacinas para tratamento de covid-19”, mas disse que mais detalhes só poderiam ser obtidos presencialmente.

A BBC News Brasil então visitou a farmácia com uma câmera escondida na última quarta-feira (7). A drogaria fica em uma rua movimentada, com restaurantes, lojas e supermercado.

Falando espanhol e se passando por um imigrante, um membro da equipe se dirigiu ao homem de avental que atendia pacientes atrás do balcão, dizendo que havia tido covid um mês antes e que estava sentindo dor de cabeça e dificuldade para respirar.

O avental do atendente tinha na lateral um logo com a inscrição “Complexo Hospitalar Mandaqui”, um hospital público de São Paulo.

Após analisar as imagens feitas pela BBC, o hospital disse que o homem não trabalha lá e que o logo bordado em seu avental não é usado desde 1997.

Além dele, só havia na farmácia no momento da visita outra funcionária, que cuidava do caixa. Ela e o homem de avental falavam entre si e com os clientes em português.

Oferta de vacina

Ao receber o repórter, o homem de avental perguntou quem o havia indicado e pediu que aguardasse, pois já estava atendendo outras pessoas.

Pouco mais de uma hora depois, período em que foram recebidos nos fundos da farmácia cerca de dez pacientes, o atendente mediu a temperatura do repórter e usou um oxímetro para conferir sua oxigenação sanguínea.

“Vou pôr um soro de antibiótico em você e vou colocar você no oxigênio. E dar a vacina para falta de ar, tá bom?”, propôs o homem de avental.

Questionado pelo repórter sobre o preço do tratamento, o homem titubeou e mudou a recomendação, passando a indicar somente a “vacina”, que, segundo ele, atacaria a “covid e a falta de ar”.

Caso os sintomas não sumissem, disse o homem, o repórter deveria voltar em alguns dias para tomar um “soro com vitamina” por R$ 250.

O repórter perguntou se aquela seria uma “vacina de covid”. O atendente confirmou e pediu ao repórter que entrasse na sala atrás do balcão. Ali, minutos antes, uma mulher havia recebido soro intravenoso, procedimento que não pode ser realizado em farmácias, segundo o Conselho Federal de Farmácia.

O repórter questionou ao atendente se a vacina era a CoronaVac, uma das marcas aprovadas para vacinação contra a covid-19 no Brasil.

“Não, não é dessas vacinas, não”, respondeu o homem. “Essa é vacina para o tratamento que você tá.”

“Vacina para tratamento de covid?”, indagou o repórter. “De Covid”, confirmou o atendente. “Não é vacina de CoronaVac, porque você nem pode tomar aquilo ainda”, completou.

Segundo o homem, como o repórter disse estar se recuperando de covid-19, a CoronaVac poderia lhe provocar “uma recaída, porque é vírus mortos que jogam em você”.

Infectologistas dizem que não há qualquer risco de “recaída” se alguém tomar a CoronaVac ou qualquer outra vacina aprovada contra a covid-19.

A recomendação do Ministério da Saúde é que quem teve covid aguarde um mês após a aparição dos sintomas para se vacinar.

Para pacientes que seguem doentes um mês após a infecção, recomenda-se que aguardem a recuperação total. Mas isso, explicam os especialistas, não é porque a vacina possa provocar “recaídas”, e sim porque eventuais reações à vacina podem ser confundidas com sintomas da doença.

Quando o repórter aguardava já dentro da salinha, o atendente trouxe nas mãos uma ampola onde estaria a “vacina” a ser aplicada, sem exibi-la.

O repórter disse que não tinha R$ 100 consigo, e o atendente baixou o valor da aplicação para R$ 80.

Após nova negativa, o homem indagou: “Quanto você tem?”. O repórter disse então que precisava buscar o dinheiro em casa e deixou a farmácia, sem regressar.

Pouco antes da consulta, o homem com avental também havia receitado uma “vacina” para uma imigrante idosa que se queixava de dor nas costas. O atendente a levou para a salinha e fechou a porta.

Segundos depois, ela deixou a sala e foi ao caixa efetuar um pagamento.

Tratamento sem eficácia adia busca por hospital, diz médico

Para o médico infectologista Alberto Chebabo, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia e professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), são comuns os casos de pessoas que, submetidas a tratamentos sem eficácia contra a covid, levam tempo demais para procurar o hospital.

“Quando buscam, a doença já está em fase muito avançada, em que já temos pouco a oferecer para reverter o quadro”, afirma.

Além de condenar a oferta de uma “vacina para tratar covid”, produto que esclarece não existir, Chebabo questiona a recomendação feita pelo atendente de que o paciente voltasse à farmácia para tomar um “soro com vitamina” se os sintomas não cessassem.

“Não há nenhuma recomendação de qualquer tipo de vitamina pra covid-19, nem pós-covid, nem durante. Nada disso tem qualquer comprovação científica”, afirma.

O infectologista diz ainda que os tratamentos disponíveis para a covid-19, como os que envolvem antibióticos, antivirais e outros medicamentos, só podem ser feitos com o paciente internado em hospital ou com receitas médicas legítimas.

Ele diz que, mesmo que o atendente da drogaria fosse um farmacêutico, estaria extrapolando suas funções e cometendo exercício ilegal de medicina ao sugerir que nos faria uma aplicação de antibióticos.

Segundo a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), só médicos podem prescrever antibióticos.

Mesmo que o homem de avental fosse médico, ele estaria proibido de trabalhar em farmácias ou ser dono de um estabelecimento do tipo, segundo as regras vigentes.

Procurado pela BBC, o Ministério da Saúde disse que “qualquer denúncia sobre atendimento de saúde ilegal e tratamentos falsos deve ser apurada pelas autoridades policiais competentes”.

A pasta afirmou ainda que estrangeiros que moram no Brasil têm direito a acessar o Sistema Único de Saúde “sem restrições, incluindo a vacinação contra a covid-19”.

Operação policial

Comunicado sobre o caso na semana passada, o Conselho Federal de Farmácia acionou o conselho regional em São Paulo, que enviou à drogaria ontem uma equipe para uma vistoria em conjunto com a Vigilância Sanitária e a Polícia Militar.

O presidente do Conselho Regional de Farmácia do Estado de São Paulo, Marcos Machado, disse à BBC que foram encontradas “várias irregularidades” na drogaria, entre as quais a presença de medicamentos de uso restrito a hospitais.

Ele afirma que os responsáveis deverão responder por crimes contra a saúde pública e terão de mostrar como conseguiram esses medicamentos. Além disso, podem ser banidos do conselho.

Os funcionários da farmácia foram levados ao Departamento de Polícia de Proteção à Cidadania, da Polícia Civil, para prestar depoimento.

Comunidade golpeada

Para a artesã Rosana Camacho, presidente da Associação de Residentes Bolivianos, de São Paulo, os fatos descritos pela reportagem são “desoladores”.

Ela afirma que muitos bolivianos recorrem a farmácias ou clínicas informais em busca de tratamento médico por sentirem que são mal tratados em hospitais públicos.

“Existe um mito entre eles de que, se o atendimento já demora para quem é brasileiro, vai demorar ainda mais para quem é imigrante”, afirma.

Camacho diz ter ouvido um compatriota contar que gastou R$ 300 em tratamentos contra a covid-19 em uma farmácia.

Ela afirma que a comunidade está sendo duramente golpeada pela pandemia. Muitos imigrantes bolivianos moram em casas compartilhadas entre duas ou três famílias, o que facilita a transmissão do vírus.

Além disso, ela afirma que as lojas e oficinas de costura onde muitos bolivianos trabalham jamais deixaram de operar.

“Mesmo no auge da pandemia, o comércio continuava atendendo com as portas fechadas. Todos os imigrantes dependem do comércio.”

“Todos os dias recebemos notícias de um, dois ou três que faleceram”, diz Camacho. “E isso que só ficamos sabendo dos que eram mais populares, dos que participavam de grupos folclóricos ou trabalhavam em comércios grandes”, completa.

A maior parte das vítimas, diz ela, eram “anônimos” que levavam vidas discretas, quase reclusas, entre as casas e as oficinas de costura. Poucos em volta sabiam que eles viviam, poucos souberam que eles morreram.

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