‘Limpei até privada’: dentistas de clínicas populares relatam precarização

Nas últimas semanas, páginas do Instagram e grupos de WhatsApp criados por profissionais de odontologia têm denunciado condições de trabalho precárias em clínicas de grandes franquias populares. Sob o título de “Furada Odonto”, as postagens reúnem relatos de vários estados, entre eles Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul e Pará. Em geral anônimos, os textos são acompanhados de fotos das instalações das clínicas.

“Fui trabalhar numa franquia em que até privada tive de limpar”, diz uma das postagens. “O dono da clínica entrava no meio de uma consulta para me apressar. Um dia ele me mostrou uma planilha cheia de números exigindo como deveria ser meu desempenho”, afirma outra.

Profissionais afirmam ter tido a saúde afetada pelo regime de trabalho: “Eu era chantageada a fazer coisas além da minha obrigação. O gerente gritava com funcionários, havia reuniões fora de horário comercial, mensagem de WhatsApp de domingo. Tive crises de ansiedade. Até que chegou o dia que meu marido me arrancou de lá no meio do expediente”.

“São tantos atendimentos por dia que não tenho tempo nem de almoçar, beber água ou ir ao banheiro. É uma superlotação de agenda, um paciente atrás do outro”, queixa-se outra pessoa. Também há denúncias de atrasos nos salários e até ausência de pagamento.

Dentre as reclamações mais comuns nas páginas do “Furada Odonto”, estão:

  • Atraso no pagamento, calote ou pagamento abaixo da tabela combinada;
  • Reaproveitamento de material descartável, falta de autoclave e ausência de esterilização;
  • Assédio moral por parte de supervisores e donos das clínicas;
  • Carga excessiva de trabalho, com mais de 30 atendimentos por dia;
  • Pressão para que dentistas vendam tratamentos desnecessários ao paciente;
  • Realização por técnicos de procedimentos exclusivos a cirurgiões-dentistas;
  • Falta de manutenção e higiene nas instalações.

Ampliação do acesso
As franquias populares se consolidaram na última década no Brasil. Com preço abaixo do praticado por consultórios particulares, ampliaram o acesso dos brasileiros a serviços odontológicos. Dentre as mais conhecidas, a OdontoCompany possui mais de 1.700 unidades pelo país. A Sorridents conta com cerca de 500 unidades. A Orthopride, 205 — e prevê abrir outras 75 até 2024.

Segundo o Conselho Federal de Odontologia, o setor movimenta quase R$ 38 bilhões por ano. São mais de 328 mil cirurgiões-dentistas para cerca de 150 milhões de brasileiros, que procuram um especialista pelo menos uma vez por ano.

As páginas da “Furada Odonto” descrevem, por trás desse sucesso, uma engrenagem de exploração que tem colocado em risco pacientes e sobrecarregado profissionais. Segundo dentistas ouvidos pela reportagem do TAB, um dos principais motivos é a aquisição de franqueadas por empresários que não são da área.

Em 2017, o Conselho Regional de Odontologia de Minas Gerais chegou a emitir uma resolução, obrigando que a composição acionária majoritária dessas clínicas fosse de cirurgiões-dentistas, sendo um dos sócios o responsável técnico. Meses depois, a Justiça derrubou o parecer.

Boca no mundo
O dentista Fabiano Rafael criou a página “Furada Odonto RJ” com objetivo de expor, como diz, “condições de trabalho ruins, clínicas que não honram com seus compromissos e situações extremamente absurdas”. No fim de janeiro, poucos dias depois da criação do perfil, a cirurgiã-dentista Kivia Souza de Oliveira, 29, que trabalhava em uma franqueada popular, morreu de infarto em sua casa. À família e amigos, ela relatava uma carga de trabalho exaustiva e salários atrasados, que resultaram em um quadro de burnout.

Embora não exista uma correlação clara entre a morte e o estresse no trabalho, o falecimento de Kivia fez o movimento “Furada Odonto” ganhar força. Fabiano Rafael organizou um ato na frente da clínica, com a presença de familiares. Profissionais de outros estados também se solidarizaram com a colega.

Por medo de retaliação, alguns relatos seguem anônimos — tanto nas postagens quanto neste texto. Muitos dos submetidos às condições precárias são recém-formados que temem perder o emprego. Muitos deles possuem dívidas como a de financiamento estudantil.

Necessidade de fiscalização
Conselhos Regionais ouvidos pela reportagem apontam a necessidade de denúncias por parte dos profissionais. Para isso, seria necessária uma atuação mais eficiente de órgãos como Ministério Público do Trabalho, Ministério do Trabalho e Vigilância Sanitária, além de uma atuação mais firme do Conselho Federal de Odontologia.

Em alguns locais isso tem ocorrido. O Conselho Regional de Odontologia de Minas Gerais, por exemplo, firmou em setembro de 2021 um acordo de cooperação técnica com o Ministério Público do Trabalho da 3ª Região, com vigência até setembro deste ano. A partir da colaboração, o fiscal do Conselho pode agir como fiscal trabalhista nas visitas a clínicas.

O Ministério Público do Trabalho afirma priorizar ações coletivas. “É impossível olhar tudo que acontece. Por isso a importância da denúncia no canal certo”, afirma Tadeu Henrique Lopes da Cunha, coordenador nacional de combate a fraudes nas relações de trabalho. Já a fiscalização das condições sanitárias é de competência da Vigilância Sanitária de cada município. Muitas prefeituras, porém, não contam com estrutura adequada de fiscalização.

A qualidade do ensino é outro fator criticado pelos envolvidos na cadeia odontológica. Nos últimos cinco anos, o número de cursos saltou de 220 para 412, um aumento de 87%. E uma portaria do MEC de 2019 autorizou até 40% de ensino a distância em cursos presenciais de qualquer área. Somados, os dois fatores estariam criando uma massa de profissionais despreparados.

“Uma hora vai colapsar. Você tem muito dentista para poucas vagas. Os grandes empresários vão se aproveitar dessa situação”, diz Outair Bastazini Filho, presidente do CRO-RJ. Em 2019 e 2022, o Conselho Federal de Odontologia entrou com uma ação civil pública pedindo a suspensão de novos cursos, mas não foi atendido. Procurado pelo TAB, o MEC não respondeu aos pedidos da entrevista.

‘Serviços errados’
A precarização do serviço odontológico, além disso, resulta em atendimentos ruins. O dentista Elias Filho, com consultórios particulares em Cachoeirinha e Torres (RS), afirma que muitos clientes precisam refazer tratamentos. “Estou há dois anos com uma paciente em que a clínica anterior realizou um procedimento que a estrutura dentária dela não tinha capacidade.”

Com mais de 30 anos de carreira, Veridiana* relembra que, quando começou, as condições inadequadas na profissão já existiam. Segundo ela, no entanto, a escala mudou com a proliferação das franquias. “Viraram uma máquina de dinheiro, não de saúde”, afirma a profissional, que já atuou em diversas dessas franquias.

O cenário cria um círculo vicioso de desânimo com a profissão. Foi o caso de Fernanda*, que quase desistiu da carreira há dez anos, após passar por constrangimentos em clínicas onde trabalhou, no interior de Minas Gerais. “Foi a pior época da minha vida. Estava grávida, desempregada e humilhada. Entrei em depressão, passei a odiar minha profissão, a realidade era muito diferente do que nos diziam. Entrar em um consultório me dava crise de pânico.”

O outro lado
A reportagem consultou as franquias citadas. A Orthopride afirmou ter “como premissa o cumprimento de regras estabelecidas em seus manuais de boas práticas”, com “acompanhamento para que sejam cumpridas as cláusulas estabelecidas por todos os envolvidos na execução dos serviços oferecidos”, e, “ao receber uma reclamação, e se identificada alguma irregularidade, dá início a um procedimento interno de avaliação para tomar as devidas providências”.

A OdontoCompany afirma fazer apuração detalhada de cada denúncia e possuir canais para isso: “Muitas das vezes as reclamações são feitas por pessoas que não se identificam, o que dificulta qualquer tipo de ação”. A empresa disse ainda que “repudia atos de calúnia, difamação e qualquer apologia à violência, como já vem acontecendo em algumas páginas nas redes sociais, que estimulam atos de vandalismo e de desordem”.

Procuradas, as franquias Sorridents, OdontoMais, Vamos Sorrir, Sorriso do Povo e Odontoclinic não responderam.

*nomes trocados a pedido dos entrevistados

Mostrar mais
Botão Voltar ao topo