Pela primeira vez, ciência demonstra imunidade pelo SARS-CoV-2 em humanos

A primeira demonstração de que anticorpos contra o SARS-CoV-2 conferem imunidade às pessoas já infectadas se deve ao ocorrido em um barco pesqueiro em Seattle, nos Estados Unidos. Esses navios passam meses na costa do Alasca. Desde o início da pandemia, os tripulantes são testados para a presença do novo coronavírus antes de cada viagem.

Em abril, um dia antes da partida de um desses barcos, 120 dos 122 tripulantes (113 homens e 9 mulheres) foram testados por PCR, para saber se estavam infectados, e por sorologia, para saber se já haviam sido infectados no passado. Os 120 marinheiros testaram negativo no PCR, e 114 na sorologia. Portanto, os testados estavam livres do vírus e seis dos tripulantes já haviam sido infectados, tinham se curado e possuíam anticorpos contra o vírus.

A conclusão é que pessoas que desenvolvem anticorpos contra a “spike protein” (S) e mais especificamente para a ponta de S, chamada de RBD, não são infectados pelo SARS-CoV-2
A conclusão é que pessoas que desenvolvem anticorpos contra a “spike protein” (S) e mais especificamente para a ponta de S, chamada de RBD, não são infectados pelo SARS-CoV-2 Foto: Alex Silva/Estadão

Não se explica por que os outros dois tripulantes não foram testados, mas é provável que esse descuido permitiu a descoberta. O fato é que depois de 18 dias no mar a tripulação começou a apresentar sintomas de covid-19. O barco retornou ao porto e um dos marinheiros teve de ser hospitalizado.

O impressionante é que 104 das 122 pessoas a bordo (85%) foram infectadas pelo SARS-CoV-2. Múltiplos testes foram feitos nessas pessoas no mês após o desembarque. O vírus foi isolado e sequenciado: todos foram contaminados por uma única cepa de vírus. Mas o que teria acontecido com os seis marinheiros que ao embarcarem possuíam anticorpos?

Três não foram infectados e os outros três foram infectados e testaram positivo para o PCR, após voltarem ao porto. Intrigados, os cientistas decidiram investigar que diferença havia entre esses dois grupos.

A primeira diferença é que os que não haviam sido infectados apresentaram níveis muito altos de anticorpos no teste da Abbott antes de embarcar. Já entre os infectados, dois apresentavam níveis limítrofes de anticorpos e o outro um nível baixo de anticorpos. Não se sabe se as três pessoas que testaram positivo para o PCR na volta ao porto se reinfectaram na viagem ou se o resultado do teste sorológico inicial era um falso positivo.

O teste da Abbott, que foi usado antes do embarque, detecta a presença de anticorpos para a nucleoproteína (N) que está no interior do vírus. Esses anticorpos sabidamente não impedem a entrada do vírus na célula. Por este motivo os cientistas decidiram caracterizar melhor os anticorpos presentes nessas seis pessoas. Por sorte o laboratório que fez os testes nos marinheiros ainda tinha o soro coletado antes do embarque, e o tipo dos anticorpos presentes pôde ser investigado cuidadosamente.

O que os cientistas descobriram é que os três marinheiros que não foram infectados possuíam anticorpos contra a lança (aquele chifre que o vírus possui e se liga à célula, permitindo a penetração do vírus). Isso foi comprovado com dois testes sorológicos: um contra a “spike protein” (S), que forma toda a lança e outro contra o “receptor binding domain” (RBD), a ponta da lança que se liga à célula. Os três marinheiros que foram infectados não possuíam esses dois tipos de anticorpos.

Finalmente, para confirmar que esses anticorpos eram os responsáveis pela imunidade, foram usados mais dois ensaios onde se verifica se os anticorpos bloqueiam a entrada do vírus na célula. Novamente o resultado se confirmou: os marinheiros que não se infectaram tinham anticorpos que bloqueavam a entrada do vírus na célula, os que foram infectados não possuíam esses anticorpos. Finalmente, os cientistas calcularam a probabilidade desse evento ter ocorrido ao acaso, ou seja, de ter sido coincidência. Essa probabilidade é muito baixa, de 0,2%.

A conclusão é que pessoas que desenvolvem anticorpos contra a “spike protein” (S) e mais especificamente para a ponta de S, chamada de RBD, não são infectados pelo SARS-CoV-2 e, portanto, são imunes ao vírus. Essa é a primeira demonstração que pessoas já infectadas desenvolvem imunidade ao vírus quando produzem anticorpos contra a S e RBD. Mas é bom lembrar que ainda não se sabe por quanto tempo dura essa imunidade.

Nos estudos de soroprevalência que estamos fazendo em São Paulo temos usado um método que detecta anticorpos contra N e outro que detecta anticorpos contra N e S. No futuro é provável que as pessoas poderão realizar dois testes sorológicos: um para detectar anticorpos contra N com o objetivo de saber se a pessoa foi infectada no passado, e outro para detectar anticorpos contra RBP, que deve indicar se a pessoa já é imune ao vírus. Mas esses dados precisam ser confirmados e os testes validados.

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