Policial presa por amamentar denunciou assédio sexual e cogita deixar a PM

Presa ao se recusar a extrapolar seu horário de trabalho para poder amamentar seu filho, de 2 anos, a soldada da Polícia Militar Tatiane Alves já fez outras denúncias de irregularidades dentro da corporação. Ela expôs casos de assédio sexual e moral, mesmo com o risco de represálias, defende que a Justiça deve começar dentro de entidades como a PM, mas, lidando com problemas psicológicos associados ao trabalho, já pensa em mudar de profissão e deixar de ser policial.

O primeiro caso denunciado por ela ocorreu em Imperatriz (MA), em 2020. Na ocasião, Tatiane foi transferida de batalhão após dizer que vinha sofrendo assédio sexual e gravar um vídeo relatando o caso, que repercutiu nas redes sociais. Ela acusou um comandante de assediá-la e de impedir que a policial trabalhasse nas ruas por se recusar a ter relações sexuais com ele.

O caso ainda está em processo, e Tatiane foi denunciada por “crime militar”, por supostamente manchar a imagem da corporação. Em 2021, a policial decidiu criar um perfil no Instagram para divulgar casos de abuso dentro da polícia, o @relatosdeabusomilitar.

Expor casos assim é uma consequência de anos convivendo com um ambiente que ela chama de “tóxico” na PM. Ela decidiu levar o próprio caso a público e ajudar outros militares a relatarem o que já passaram. Uma forma de encontrar a justiça que ela não vê ser feita pelos meios oferecidos na corporação.

Eu sempre tive isso comigo. Sempre tive senso de justiça. Nunca gostei de ver alguém sendo humilhado maltratado. É algo que carrego desde criança e nem sei muito bem quando começou. É apenas a forma como eu sempre pensei. (…) Então eu desejo justiça”

Quando, no dia 5 de setembro, o comandante de Tatiane tentou impedi-la de amamentar para trabalhar em hora extra, ela não teve dúvidas de que deveria lutar. Mesmo com dificuldades, ela sempre conciliou os plantões com a alimentação do filho, de 2 anos, que ainda precisa amamentar devido a necessidades nutricionais. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda o aleitamento materno pelo menos até os dois anos; após essa marca, o leite materno continua sendo importante fonte de nutrientes e protege contra doenças infecciosas.

“Naquele dia, eu falei que precisava sair e amamentar meu filho. Mas não fui ouvida e fui surpreendida. Acabei presa por ‘desobediência’, por uma ordem do tenente Mário Oliveira. Passei 24h detida em um alojamento de policiais no Comando Geral da Polícia Militar e só saí por meio de um alvará de soltura conseguido pelo meu advogado”, conta.

Em nota, a SSP/MA diz lamentar o ocorrido e que “reforça seu comprometimento em mitigar condutas de membros da corporação, incompatíveis com os princípios profissionais e éticos que orientam as atividades do Sistema de Segurança do Maranhão”.

O órgão diz que “as providências cabíveis foram adotadas”, bem como que o secretário de Segurança Pública do Maranhão, Jefferson Portela, “tão logo teve conhecimento do caso, convidou a soldada Tatiane Alves no intuito de escutar, acolher e prontamente solucionar o caso. Fato divulgado pela própria em entrevistas”.

Além do trabalho

Aos 32 anos, Tatiane Alves de Lima é mãe, esposa e mora há cerca de dois anos em São Luís, mas é natural de Altamira, no Pará. Tímida e um tanto retraída, quase não tira fotos, por não gostar e preferir o anonimato. Filha única, perdeu a mãe aos 9 anos e foi criada até os 15 pelo pai, um pedreiro que rodou por vários estados do país em busca de uma vida melhor a ela.

Aos 15 anos, o pai iniciou um novo relacionamento e então Tatiane entendeu que era o momento de seguir seu próprio meu rumo. Estudou e entrou na faculdade, onde se formou em Administração de Empresas. No ambiente acadêmico, as reflexões sobre o que estava errado na sociedade enfim se afloraram.

Eu não sou de nenhum movimento que se vê por aí e meus conceitos eu fui formando no decorrer da vida. Mas abri mesmo minha mente quando estava mais madura, na faculdade, onde aprendemos a pensar por nós mesmos. Aprendi bastante estudando. A ver como deveria ajudar”

Assim que se formou, partiu para encontrar um emprego aliado ao seu propósito de ajudar as pessoas e contribuir com a justiça social. Pensou em entrar para o Exército, mas decidiu aproveitar a oportunidade de ser policial quando passou no concurso, em 2012.

“Sempre quis ajudar as pessoas e aí, desde criança, eu já tinha o pensamento em ser policial, porque queria combater o crime. Então fiquei muito feliz quando realizei esse sonho. Foi mais de um ano estudando muito”, conta.

Assim que foi aprovada, precisou dividir os estudos no curso de formação na polícia com as tarefas domésticas. Uma missão difícil até hoje. Quando o filho nasceu, em 2019, conciliar as obrigações profissionais e de família ficou ainda mais complicado. É o atual marido, Stefano, quem ajuda bastante.

Estou no meu atual relacionamento há dois anos. Meu filho, por exemplo, é de outro relacionamento, mas eu digo que o pai é meu esposo, porque é ele que merece esse título de pai, por estar presente e cuidando”

Danos psicológicos e falta de apoio

Tatiane diz que passa por problemas psicológicos após a prisão e tem feito tratamento para melhorar. “Antes, eu era uma pessoa alegre, brincalhona. Hoje, eu tenho que fazer tratamento psicológico e sofro com isso. Eu só fui começar a tratar ansiedade e depressão quando entrei na PM”, diz a policial.

A falta de apoio dentro da corporação, até mesmo das policiais femininas, também fez falta. Para a soldada, o medo amordaça e cria uma situação na qual, até para prestar apoio, é mais fácil para os homens.

“Por incrível que pareça, quando aconteceram os casos de assédio, eu tive mais apoio masculino. A mulher tem medo de também sofrer represália. No estado do Maranhão, não existe um núcleo para nos apoiar. A Corregedoria é formada por oficiais e a maioria dos assediadores são oficiais. Há esse corporativismo deles. Quando vem alguma denúncia, eles querem abafar”, afirma Tatiane.

Mesmo não se dizendo parte de movimentos “progressistas”, Tatiane está convicta na tese da desmilitarização da Polícia Militar como solução para os casos de assédio que estão destruindo o psicológico das mulheres militares.

É a militarização da polícia que, no meu modo de pensar, é uma forma que não permite aos policiais que trabalham efetivamente na rua de terem sua discricionariedade [liberdade de ação administrativa]. Atualmente, é preciso agir de forma imposta e muitas vezes contra a própria vontade. Exemplo: em movimento contra o governo, somos obrigados a agir de forma determinada pelos oficiais, e não cumprir nos leva a punição”.

Próximos passos

Como mãe, ela não esconde a preocupação com a falta de renda e a qualidade de vida que precisa dar ao filho, mas já decidiu que precisa cuidar de si. O sonho de mudar para melhor a vida das pessoas como policial acabou e é hora de mudar de profissão.

“Eu não tenho condições de voltar ao trabalho agora e estou pensando em exoneração. Minha família quer que eu saia. Meu marido está 24h comigo e vê a situação que eu já passei, como eu fiquei. Então se está me adoecendo, é melhor eu sair. Eu sou formada em administração de empresas e estou no 6º período de Direito para conseguir um outro emprego no futuro”, diz.

Mas sair da PM não será um ato de desistência. Além de ampliar a divulgação dos assédios no ambiente militar pelo perfil @relatosdeabusomilitar, a soldada pretende levar a tese da desmilitarização das polícias para a monografia no curso de Direito.

“Quando eu estava em Imperatriz, fiquei tão abalada psicologicamente que eu simplesmente me retraí da situação para que pudesse me tratar. Fiquei um ano afastada fazendo tratamento de depressão e ansiedade e retornei há mais ou menos dois meses ao serviço ativo e, infelizmente, aconteceu essa situação de abuso de meu superior. Mas, dessa vez, eu decidi ir à mídia e falar a verdade do que a gente sofre na instituição militar dos portões para dentro. Vou seguir em frente”, finalizou.

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