Vacina russa usou modelo falho para avaliação de eficácia, diz infectologista

Recentemente, a Rússia registrou oficialmente a primeira vacina contra o novo coronavírus. Batizado de ‘Sputnik V’, o imunizante despertou a desconfiança de autoridades de saúde do mundo todo. Isso porque, ao que parece, seu desenvolvimento foi feito em tempo recorde, “pulando” algumas fases de teste importantes.

Agora, documentos publicados na revista The Lancet – que se baseiam em testes obtidos nas fases 1 e 2 – indicam que a vacina obteve resultados bastante positivos. A papelada descreve que os voluntários desenvolveram anticorpos “sem eventos adversos graves”.

Dois grupos, com 38 voluntários saudáveis entre 18 e 60 anos, receberam a imunização em duas doses. Cada participante recebeu a primeira parte da vacina e, 21 dias depois, o reforço. Eles foram monitorados por 42 dias e todos desenvolveram anticorpos nas primeiras três semanas.

No entanto, os testes não contaram com o chamado grupo de controle, em que há a aplicação de um placebo nos voluntários. Todos os envolvidos receberam o imunizante. Segundo Raquel Stucchi, Infectologista da Unicamp e Consultora da Sociedade Brasileira de Infectologia, essa abordagem “compromete a análise dos resultados desta fase. Isso porque você não pode avaliar corretamente se as reações foram pela vacina ou não”.

“Você também não consegue avaliar se anticorpos foram criados a partir da vacina ou por alguma outra exposição que eles tiveram. Então, o modelo que eles usaram é falho em termos de avaliação inicial de uma vacina”, completa.

Ainda de acordo com a médica, mesmo que a vacina tenha demonstrado resultados positivos, não há garantia de que possa ser realmente eficaz. “O prazo de acompanhamento foi muito curto. É pouco tempo para ver uma reação ou efeito colateral. O que dá para falar desse estudo publicado é que essa é uma vacina que pode avançar para a fase 3, mas o ideal é que seja feito um estudo com placebo também”.

A infectologista também comentou sobre a entrada na fase 3 de aplicação: “Na fase 2, todas [as vacinas em desenvolvimento no mundo] mostraram que levaram à criação dos anticorpos e que, por um período curto de observação, não tiveram reação grave. De todas elas, ainda vamos ter de aguardar os resultados de fase 3. Qualquer conclusão neste momento é muito precipitada”, afirma.

A fase 3 de uma vacina consiste na aplicação do composto em milhares de pessoas. Esse processo pode levar anos para ser concluído. Apesar disso, a Rússia planeja iniciar a imunização em massa em outubro. No início, profissionais de saúde e pessoas que fazem parte do grupo de risco receberão as aplicações.

No entanto, mesmo a fase 3 dando certa segurança, Stucchi afirma que ainda podem ocorrer complicações nos imunizados. “Quando é ampliada para toda a população, podemos ter outros resultados que não foram observados anteriormente”.

Ao citar um exemplo disso, a infectologista fala sobre o ocorrido com a vacina contra a dengue. “Algumas vezes a gente se surpreende, tivemos a vacina da dengue, por exemplo, que, assim que foi lançada, foi colocada para vacinação em campanhas públicas em alguns estados. Após um tempo, foi percebido que, em crianças menores, a vacina apresentava problemas. Algumas delas, depois de vacinadas, tiveram quadros mais graves da doença”.

Por fim, Stucchi comenta sobre a ‘Sputnik V’ em relação às criações de outros países: “A vacina russa, assim como as vacinas de Oxford e chinesa, está na ‘linha de largada’ de uma corrida para ver quem vai conseguir mostrar resultados que garantam eficácia e segurança”.

Ao ser questionada se ela pensa que a vacina russa pode ser o primeiro imunizante eficaz contra a doença, ela afirma que “se houver uma ampliação dos voluntários, aí sim podemos, em alguns meses, ter alguma conclusão”.

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