‘Ser vacinado não nos isenta de andar de máscara pelos próximos dois anos’, diz pneumologista da Fiocruz

Uma das profissionais de saúde mais atuantes durante a pandemia, Margareth Dalcolmo, pneumologista e pesquisadora da Fiocruz, é categórica ao afirmar que o país está atrasado na organização da vacinação, o que vai estender o prazo para imunização da população brasileira.

Em entrevista ela critica o obscurantismo do discurso oficial a respeito da gravidade da pandemia, destaca o trabalho dos pesquisadores e diz que é obrigação de toda a comunidade acadêmica vir a público para esclarecer as dúvidas da população, inclusive em relação às vacinas.

A pesquisadora ainda alerta que os cuidados como uso de máscara de proteção, distanciamento social e evitar locais fechados deverão permanecer pelos próximos dois anos, mesmo após a chegada da vacina.

“São medidas civilizatórias.”

Muitos pesquisadores afirmam que o Brasil está atrasado no plano de vacinação. Qual impacto que a demora nessa organização da imunização terá sobre o controle da pandemia?

Nós temos um atraso no “timing” das providências. Há oito meses, assim que a epidemia eclodiu, as vacinas começaram a ser produzidas. Isso é uma coisa inédita. Nunca se produziu tanto em tão pouco tempo. Foram usadas plataformas de vacinas completamente novas.

O Brasil fez uma coisa muito boa, que foi investir em um processo de transferência de tecnologia e de nacionalização da vacina junto à AstraZeneca através da Fiocruz, que é, sem dúvida, louvável.

Por outro lado, deixamos de prestar atenção nas outras vacinas que estavam em produção no mundo. E, hoje, há vacinas que já estão sendo aprovadas e nós não temos cronograma nem acordos de cooperação para sua compra.

Então, hoje, quando nós vemos o nosso ministro adiantar que vai ter uma compra de 70 milhões de doses junto à Pfizer, é estranho. Porque, até onde sabemos, o que temos assegurado são 8,5 milhões de doses.

Por outro lado, há a vacina da Sinovac, junto ao Instituto Butantan. As vacinas não podem ser para um estado só. Elas têm de ser incorporadas ao PNI [Programa Nacional de Imunização].

Estamos vivendo um momento de grande paradoxo. Se por um lado o Brasil tem grande tradição, reconhecida internacionalmente, de saber vacinar, pois o PNI é muito estruturado e organizado, por outro temos a preocupação com a logística e a aquisição de insumos.

Haverá várias vacinas, e a logística é diferente para cada uma delas.

Já a questão dos insumos é preocupante. Não porque não consigamos comprar 300 mil seringas e agulhas —se a produção brasileira não der conta, há condições de adquirir no mercado externo, mas o mundo inteiro está atrás da mesma coisa, o que deve aumentar os custos.

Isso poderia ter sido tratado antes.

E há uma desigualdade evidente em relação às vacinas. O Canadá, por exemplo, já está com cinco doses de vacina para cada habitante, por exemplo. Eles vão doar as doses excedentes para o consórcio Covax Facility, que deve destina-las aos países mais pobres — o que, certamente, não é o caso do Brasil.

A sra. previu o janeiro mais triste da história. O que ainda é possível fazer para evitar um desastre?

Estamos num momento epidemiológico muito grave, esse recrudescimento que houve do mês de outubro para cá vai resultar realmente em uma segunda onda no Brasil. Vamos ter um fim e um começo de ano muito tristes no país, com uma segunda onda estabelecida.

A doença se rejuvenesceu. Temos visto muito mais jovens ficarem doentes.

Os jovens se acham invulneráveis, se aglomeram, estão trazendo a doença para dentro de casa. Entendo que esteja todo mundo muito cansado. Mas é uma epidemia longa, grave, desigual, que desnudou a desigualdade social obscena do Brasil.

Quando você vê a fila de pessoas esperando um leito para serem operadas, escândalos havidos em hospitais de campanha, corrupção em compras emergenciais, a gente se constrange muito.

E temo que se não resolvermos essa questão de insumos de uma maneira harmônica, mesmo sendo de responsabilidade dos municípios, isso vai dar margem a outro tipo de irregularidade, para não dar outro nome.

Se somarmos o que tem previsto de compra de insumo federal, estadual e municipal, ultrapassa os 300 milhões ao que o ministro está se referindo. Para quê? Nós somos 200 milhões de habitantes. Não vamos conseguir vacinar todo mundo. Não há vacina para todo mundo.

Aliás, não haverá vacina para todo mundo em todo lugar do mundo, porque se nós somarmos tudo o que vai ser produzido, vamos ter aproximadamente 2,7 bilhões de doses em 2021. Nós somos quase 8 bilhões de habitantes no planeta. A disputa por doses também é muito desigual.

Sabemos que os países ricos vêm na frente e compram.

Se o país tivesse se antecipado nesses processos, seria possível ampliar a quantidade de vacinados em 2021?

Acho que sim, pelo menos em questão de prazos.

O que está previsto no cronograma do Ministério da Saúde é um período contínuo de 16 meses. Isso é muito tempo, porque precisaríamos ter uma taxa de população vacinada no ano de 2021 perto de 60%, para alcançarmos a célebre imunidade de rebanho, de que todo mundo fala, mas que é um termo que só se aplica à vacinação.

Se nós tivéssemos nos adiantado na aquisição de doses e insumos, e tivéssemos investido pesadamente na logística da vacinação, poderíamos alcançar isso. Entendo que o Brasil é complexo, mas temos tradição e expertise em vacinação. O Brasil sabe vacinar.

Pesquisa Datafolha de dezembro mostra que 22% dos brasileiros não pretendem se vacinar contra a Covid-19, e esse índice chega a 50% se a vacina for chinesa. A que a sra. atribui esse descrédito da vacina?

A duas coisas. Primeiro, a um discurso muito equivocado por parte de algumas autoridades. Um discurso que é um desserviço ao Brasil e à opinião pública, que desacredita as vacinas.

Segundo, à ignorância. Ignorância no sentido de não saber. E é aí que entra o nosso papel de médicos, cientistas e pesquisadores de alertar e informar a população. As pessoas têm de entender que tudo vem da China. Não é que a vacina da Coronavac é chinesa. A vacina da AstraZeneca, cuja fábrica foi visitada recentemente pela Anvisa, fica na China. O insumo farmacêutico ativo, chamado de IFA, que nós vamos receber agora para produzir a vacina, vem da China.

A China é o maior produtor do mundo de matéria-prima da indústria farmacêutica e da indústria de biotecnologia. Por isso é uma questão de alertar a população. Vejo pessoas que ingenuamente dizem que só querem tomar a vacina inglesa. A vacina inglesa também vem da China.

Esse preconceito não é arraigado. É um preconceito ingênuo alimentado por um discurso oficial obscurantista.

Quanto influencia a população o presidente Jair Bolsonaro declarar que não tomará a vacina?

É um discurso equivocado e obscurantista que só vai ser quebrado na medida que nós, de maneira consistente e transparente, dissermos a verdade às pessoas.

Participei de uma live na última semana com uma enquete sobre quem tomaria a vacina. No início da live, só 40% diziam sim. Após as explicações, viramos esse placar subir para quase 90%. Isso só com esclarecimentos.

Entre os que desejam se vacinar, a expectativa é a de que a vida volte ao que era antes após receber as doses. Mas a sra. já afirmou que teremos que manter alguns cuidados. Quais e por quê?

Vamos ter de manter os cuidados por muito tempo. Esse vírus não vai desaparecer da nossa vida nunca mais. Nada foi tão pandêmico quanto ele.

No Brasil, não há um município que não tenha caso registrado. O vírus vai ficar endêmico. Portanto, o fato de ser vacinado não nos isenta de andar de máscara pelos próximos dois anos, por exemplo. De termos cuidado com ambientes fechados, de solicitarmos testes negativos para embarcar em voos internacionais.

Quando alguém ingenuamente diz que não vai se vacinar, também não vai viajar. Nem vai matricular criança na escola. São medidas que não são, ao meu juízo, coercitivas. Eu vejo essas medidas como civilizatórias. Pelos próximos dois anos, os cuidados precisarão ser mantidos.

O Brasil é um dos países que acumulam mais mortes por 100 mil habitantes, embora essa conta seja liderada por países europeus. Por que fomos especialmente atingidos?

Nossa situação epidemiológica não é semelhante a dos países europeus, mas sim dos EUA, onde morreram de maneira desigual as pessoas. Sabemos que a letalidade está relacionada a determinados fatores de risco. Morreram mais pessoas idosas, obesas.

Mas a letalidade foi muito alta porque a epidemia pegou o Brasil desprevenido.

A nossa maior arma, a mais potente de todas, que é o SUS, mesmo tendo entrado tão combalido nessa briga foi quem realmente resolveu.

Também erramos muito no distanciamento social. A falta de harmonia entre o discurso da comunidade científica e o discurso oficial foi enorme. Um dizendo para usar máscara e fazer distanciamento social e o outro dizendo que era uma gripe. Isso tudo prejudicou muito e contribuiu para o aumento da mortalidade.

A letalidade, que é a morte por casos confirmados, foi alta porque continuamos a pagar o preço de testarmos muito pouco. O Brasil errou nisso desde o início. Nós testamos pouquíssimo, o que é um absurdo. A condução, de modo geral, deixou muito a desejar.

As vacinas aprovadas, ou que estão em vias de aprovação, são capazes de combater a variante do novo coronavírus identificada no Reino Unido?

Essas mutações que foram detectadas no Reino Unido estão entre muitas outras que já houve no Sars-CoV-2. Já há mais de 700 mutações verificadas, nenhuma delas modificou a taxa de patogenicidade, ou seja, a capacidade de causar doenças mais graves pela Covid-19.

Essas variantes detectadas no Reino Unido, na verdade são três, todas elas já haviam sido detectadas antes, mas é a primeira vez que elas são detectadas conjuntamente no genoma.

Isso não causou aumento de casos graves, mas um aumento da transmissão.

Essa transmissão, na verdade, é muito mais atribuível às aberturas do que à própria cepa mutada. E a mesma coisa pode acontecer no Brasil.

De novo, chamo a atenção para que as medidas de contenção e de cuidado nesse fim de ano se imponham. Mas essa mutação não implica nenhuma modificação quanto à eficácia das vacinas, uma vez que as mutações observadas não têm a ver com a patogenicidade do Sars-CoV-2.


MARGARETH DALCOMO, 63

Graduada pela Escola de Medicina da Santa Casa de Misericórdia de Vitória (1978) e doutora pela Unifesp (1999), pesquisou a tuberculose e criou o ambulatório do Centro de Referência Professor Hélio Fraga, da Fiocruz, o qual dirigiu de 2009 a 2012. É membro do Comitê Assessor em Tuberculose do Ministério da Saúde e de comissões da Boston Medical School, da Organização Mundial da Saúde e do Banco Mundial. Na pandemia de Covid-19, assessorou o Ministério da Saúde na gestão Luiz Henrique Mandetta.

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